“Onde estão as mulheres de grelo duro do nosso partido?”, inquiriu o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A indagação, pescada em um dos
grampos divulgados na última quarta-feira (16), foi feita em conversa de
Lula com o ex-ministro Paulo Vannuchi.
Representantes de movimentos feministas, como Lola Aronovich, do blog
Escreva, Lola, Escreva, foram interpeladas por comentaristas na
internet sobre essa e outras falas de teor supostamente machista do
ex-presidente.
Em uma publicação na última quinta (17), a ativista escreveu, em
resposta a “cobranças de reaças”: “É meio estranho o negócio, porque
eles vivem negando que machismo existe”.
A mais comentada talvez tenha sido mesmo a que envolvia o tabuísmo
que designa “clitóris”. O “grelo duro” chocou muitas mulheres, que
identificaram o termo chulo com uma atitude desrespeitosa.
Brasileira nascida na Argentina, Aronovich, que é professora do
departamento de letras estrangeiras da Universidade Federal do Ceará,
escreveu: “Pra mim me parece machista, mas não sei explicar o porquê.
Outras feministas não acharam”.
Em entrevista à Folha, a escritora e ativista feminista
Daniela Lima frisou o aspecto regional da fala. “Essa expressão é muito
utilizada no Nordeste e é sinônimo de mulher forte.” A mesma explicação
apareceu em comentários nas redes sociais. E frisou: “Se Lula dissesse
que um homem é ‘pica grossa’, por exemplo, não causaria nenhum espanto”.
“Isso reflete o lugar destinado ao corpo feminino em nossa sociedade e
quais são as qualidades impostas a esse corpo, tais como fragilidade e
docilidade.”
O raciocínio de Lima se estende também para a fala de Lula sobre Rosa Weber, ministra do Supremo Tribunal Federal.
Em conversa grampeada no dia da condução coercitiva de Lula, 4 de
março, do ex-presidente com Jaques Wagner, então à frente da Casa Civil,
o ex-presidente disse que esperava uma atuação da presidente Dilma
Rousseff e do próprio Wagner junto à magistrada, no momento em que ela
estava para decidir sobre o curso das investigações contra o
ex-presidente.
“Se homem não tem saco, quem sabe uma mulher corajosa possa fazer o que os homens não fizeram.”
Para Lima, “a coragem, assim como a força, não é uma característica
masculina”. “Dizer que Rosa Weber é corajosa não é, em hipótese alguma,
masculinizá-la. A tentativa de naturalizar características supostamente
femininas faz parte de um perverso esquema de dominação de gênero.”
VAIAS
Em outra conversa com Wagner, desta vez já após os atos pró-impeachment do último dia 13, os dois comentam a participação da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP). Na conversa, eles ironizam o fato de que a ex-petista teria sido vaiada pelos manifestantes.
“A Marta teve que se trancar na Fiesp. Foi chamada de puta,
vagabunda, vira-casaca”, afirmou o ex-presidente. Ao que Wagner
responde: “É bom pra nega aprender.”
A ex-ministra qualificou como “mentiroso” e “machista” o comentário. Em nota divulgada ainda no fim de semana, ela afirmara não ter sido vaiada no ato.
Mas o ponto talvez mais controverso das conversas interceptadas foi o
comentário, feito em tom jocoso em conversa com a presidente Dilma,
sobre como Clara Ant, diretora do Instituto Lula, teria recebido a
Polícia Federal, que cumpriu mandado de busca e apreensão em sua
residência, em São Paulo, também no dia 4.
“Foram na casa da Clara Ant. A Clara estava dormindo sozinha quando
entraram cinco homens lá dentro. Ela pensou que era um presente de Deus,
e era a Polícia Federal”, disse Lula à presidente Dilma. No áudio,
ambos riem.
Maíra Liguori, diretora da ONG Think Olga, pergunta: “Por que uma
mulher não pode achar ‘um presente de Deus’ cinco caras entrando no
quarto dela?”.
“Se isso representa uma ameaça à vida dela, uma situação de estupro
ou violência, é machista, mas uma mulher ter fantasia, pensar em sexo,
falar em sexo, isso deveria ser normal. Machista é quem vê machismo
nessa fala.”
Para Daniela Lima, a questão não pode ser despachada tão rapidamente.
“Essa frase reflete uma sociedade machista que coloca o homem no centro
do desejo da mulher. É possível dizer que era ‘só uma piada’, mas o
riso é sempre carregado de ideologia.”
Para ela “se uma mulher acordasse sozinha com cinco homens
desconhecidos em sua casa, provavelmente sentiria medo”. “E esse medo se
funda numa realidade material de violência contra as mulheres precisa
ser pensado.”
A própria Clara Ant se manifestou publicamente, em sua página no Facebook, após a repercussão da fala de Lula a seu respeito.
Na publicação, enviada também à Folha como resposta ao pedido
de entrevista, Ant agradece às “pessoas que de boa-fé se perfilaram” em
sua defesa, mas observa que “isso não é necessário”, pois, em décadas de
convívio, Lula nunca lhe “faltou ao respeito.”
No texto, ela conta que a conversa entre Lula e Dilma aconteceu
diante dela e que, embora o comentário fosse “de mau gosto, buscava
mesmo descontrair uma situação tensa”.
Ela recordou ainda “o compromisso de Lula com as reivindicações das
mulheres, cujo símbolo maior é a sanção da Lei Maria da Penha e demais
instrumentos criados em decorrência dela, como o disque 180, central de
atendimento à mulher”.
A colocação de Ant ecoa a resposta dada também pela assessoria do
Instituto Lula ao pedido de entrevista com o próprio ex-presidente sobre
as colocações.
“Essa invasão de privacidade não apaga nem reduz a atuação dele nas
causas da mulher, sua atuação concreta, histórica e real. É um absurdo
que conversas privadas, brincadeiras às vezes entre duas pessoas, sejam
tornadas públicas de maneira ilegal, por motivação política”, respondeu a
assessoria.
Na sua mensagem pública, Ant disse refutar “o oportunismo daqueles
que não apoiam a luta das mulheres contra a violência, os assédios e os
estupros”. E pergunta: “Será que não estão apenas aproveitando a
oportunidade para criticar Lula?”.
Daniela Lima também ressalta os riscos de instrumentalização das pautas feministas nesse debate.
Para ela, o ex-presidente “precisa ser criticado, mas essa crítica
não pode servir para alimentar aqueles que pouco se importam com a
desconstrução de um discurso machista, mas muito ganham com a destruição
de Lula”.
Na opinião de Manoela Miklos, uma das coordenadoras do blog#AgoraÉqueSãoElas, do site da Folha,
ao ouvir a fala de Lula ela percebe “um homem como os demais, cujo
imaginário é produto de um mundo machista, profundamente desigual”.
Evocando os “avanços na agenda de direitos da mulher” no governo
Lula, porém, ela conclui que “nisso também” o ex-presidente “é como os
demais homens: pode se transformar, aprender, e ser um bom aliado”.
Nos protestos a favor do governo na última sexta (18), aqui e ali
apareciam cartazes de movimentos feministas. Na internet, pipocava
discretamente a hashtag #teamgreloduro.
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